Um documento interno emitido pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (Ibama) com orientações sobre mudanças nos processos de licenciamento ambiental comandados pelo órgão, na prática, revoga determinações do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) sobre o assunto. Trata-se de um despacho assinado pelo presidente do órgão, Eduardo Fortunato Bim, referente a processo de licenciamento requerido por uma transportadora de gás, mas cujo entendimento passa a valer para todos os licenciamentos comandados pelo órgão daqui para frente. Tanto as mudanças trazidas no despacho quanto sua legalidade têm dividido a opinião de juristas.
O despacho muda dois pontos importantes das etapas requeridas para o licenciamento ambiental de um empreendimento.
Prorrogação automática de licenças ambientais
O primeiro ponto trata da prorrogação tácita de licenças ambientais por decurso de prazo. Isto é, se o empreendedor entrou com pedido de renovação de sua licença ambiental, mas o órgão competente não deu uma deliberação até a data em que esta licença expira, ela terá sua validade automaticamente ampliada, até que o órgão se manifeste.
Pela Resolução Conama 237/97 (artigo 18, parágrafo 4º), somente a renovação da Licença de Operação (LO) poderia ter a prorrogação tácita. No entendimento da presidência do Ibama, no entanto, uma lei posterior à Resolução 237, a Lei Complementar 140/2011, ampliou esse procedimento às demais licenças ambientais.
Para o promotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Paraná (MPRP) Alexandre Gaio, 3º vice-presidente da Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público de Meio Ambiente (Abrampa), o que o Ibama faz é confundir conceitos, ampliando a possibilidade de renovação de licenças ambientais.
“É necessário deixar bem claro que a prorrogação de validade de qualquer licença ambiental, já prevista no artigo 18 da Resolução Conama 237/97, é bem diferente da eventual pretensão de renovação de licenças ambientais, que pode se aplicar somente à licença de operação ou à licença ambiental simplificada, que dão o direito de funcionamento da atividade ou empreendimento. O que esse despacho interpretativo fez foi confundir de modo equivocado e indevido essas duas situações, dando a entender que haveria a possibilidade de renovação automática de qualquer licença ambiental, o que claramente não é previsto nem na LC 140, nem na Resolução Conama 237/97”, diz.
Segundo ele, “tanto não é assim que a própria LC 140 traz um parágrafo que diz que, em casos de demora na manifestação do órgão ambiental, os procedimentos de licenciamento não terão renovação ou prorrogação tácita, mas passarão para competência superior”, explica.
Além do aspecto legal apontado pelo procurador do MP, mudanças nas diferentes fases do licenciamento podem acarretar danos ao meio ambiente. Segundo Carlos Bocuhy, presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (PROAM) e ex-membro do Conama, as etapas de renovação de licenças são importantes porque permitem a readequação dos empreendimentos aos avanços da segurança ambiental.
“A situação não é estática, então é importante que haja uma contínua adequação. As refinarias, por exemplo, toda vez que se renovavam as licenças, era a oportunidade para que o Estado cobrasse dessas empresas a adequação aos requisitos ambientais”, explica Bocuhy.
Já para o jurista Talden Farias, professor-doutor de direito ambiental das Universidades Federais da Paraíba (UFPB) e Pernambuco (UFPE) e autor de diversos livros sobre direito e licenciamento ambiental, a decisão do Ibama foi acertada e não há prejuízo ao meio ambiente, já que o que muda com a interpretação do órgão federal é apenas a ampliação no número de licenças em que a prorrogação automática por decurso de prazo é possível, não se tratando em renovação automática.
“Se alguém que já tinha licença ambiental pediu a prorrogação da mesma com 120 dias de antecedência, no mínimo, como diz a lei, e passando esses 120 dias o órgão ambiental não se manifesta por alguma razão, não seria razoável fechar a empresa, a fábrica, fechar o hospital, por isso é dada essa prorrogação automática”, diz. “Não existe nenhuma divergência jurídica a esse respeito. No entanto, é preciso esclarecer que isso dá direito a fazer apenas aquilo que a licença anteriormente concedida já permitia. Nada a mais. Além do mais, não deixa de ser uma forma de pressionar o Poder Público em face da demora excessiva”, diz.
Inexigibilidade da Certidão de Ocupação e Uso do Solo
O segundo ponto do despacho do Ibama trata da inexigibilidade de certidão de ocupação e uso do solo no licenciamento ambiental. Segundo a Resolução Conama 237/97 (artigo 10, parágrafo 1º), o início do processo de licenciamento ambiental está condicionado à emissão deste documento, que é emitido pelos municípios e diz se o empreendimento está dentro dos critérios definidos pelo Plano Diretor Municipal.
A obrigatoriedade da Certidão de uso e ocupação do solo – ou outros nomes similares que o documento venha a ter – foi determinada pelo Conama baseada no entendimento de que a política ambiental é complementar e integrativa com a política urbanística.
Para o Ibama, a Lei de Liberdade Econômica (LLE – 13.874), publicada em setembro de 2019, traz um artigo que revoga esta normativa do Conama, ao vedar a exigência de certidões não expressamente previstas em lei.
De acordo com Talden Farias, a Certidão de Uso e Ocupação do solo não tem previsão legal e a liberação de sua exigência não trará prejuízos ambientais, nem enfraquecerá o papel dos municípios nos processos de licenciamento, já que outros documentos municipais importantes continuam a ser exigidos, como o alvará de construção, reforma e ampliação, por exemplo.
“A justificativa [para a inexigibilidade da Certidão] foi a morosidade que pode existir ao vincular uma coisa à outra. Muitos municípios demoravam demais para liberar a certidão de ocupação e uso do solo. Existem vários casos que o empreendedor ou mesmo o poder público teve que entrar na justiça para conseguir a emissão deste documento […] Desvinculando procedimentos, aumenta a agilidade”, explica. “A certidão, por si só, não dá direito a nada, ela é apenas uma declaração de que aquilo está em conformidade com a legislação municipal e sua inexigibilidade não quer dizer que o órgão ambiental possa licenciar algo em discordância com a lei municipal”, complementa.
Já o promotor do MPPR Alexandre Gaio não concorda que a exigência da Certidão de Uso e Ocupação do Solo não tenha previsão em lei. Segundo ele, ao dizer que “São direitos de toda pessoa […] não ser exigida pela administração pública direta ou indireta certidão sem expressa previsão em lei” (artigo 3º, inciso XII), a Lei de Liberdade Econômica faz referência a normas do sentido amplo, não especificamente a uma lei ordinária ou complementar, como foi justificado pelo Ibama.
“O Conama é um órgão do Sisnama [Sistema Nacional de Meio Ambiente] que tem competência para editar normas com executoriedade à legislação ambiental, e a atribuição conferida ao Conama foi dada nada mais nada menos que pela Lei Federal 6938, que é a Lei que instituiu a Política Nacional do Meio Ambiente”, explica.
Segundo ele, a não exigência deste documento, além de afrontar o pacto federativo e as competências constitucionais atribuídas aos municípios, contraria exatamente o que a determinação do Ibama propõe: dar mais segurança jurídica e agilidade aos licenciamentos ambientais.
“Pode acontecer de o órgão ambiental federal ou estadual emitirem uma licença e o município dizer: ‘peraí, essa atividade contraria as normas municipais, vou entrar com uma ação para interditar a obra’. Qual a segurança jurídica nisso?”, questiona. “Eles querem tanto desburocratizar, mas estão fazendo o contrário, porque isso [a inexigibilidade da certidão] amplia conflitos judiciais, amplia a insegurança jurídica. Temos aí um retrocesso não somente ambiental, mas também de eficiência, porque permite que decisões e entendimentos divergentes sejam camuflados e descobertos, muitas vezes, depois de o investimento ter sido feito”, complementa.
Esse também é o entendimento de entidades representativas dos municípios. Para a Confederação Nacional do Municípios (CNM), a inexigibilidade desta certidão fere o direito previsto na Constituição Federal de o município ordenar seu próprio território.
Legalidade do Despacho
A legalidade do documento emitido pelo Ibama também é ponto de inflexão entre juristas. Para Talden Farias, a afirmação de que as resoluções do Conama estão acima ou possuem a mesma força que as normas contidas na Lei de Liberdade Econômica é equivocada.
“Existe uma resposta meramente dogmática, legal, que é: a lei diz isso e a lei é superior à resolução. E outra coisa, no campo jurídico, a lei última revoga leis anteriores, naquilo que estas discordarem das últimas”, defende.
Já para Alexandre Gaio, a Lei de Liberdade Econômica não revoga o que está expresso nas Resoluções do Conama, porque ele foi criado justamente para legislar sobre os temas ambientais.
“O Conama exerce poder normativo regular, tanto que o STF tem posicionamento pacífico quanto à legalidade, legitimidade e constitucionalidade desse poder normativo, por ele decorrer de uma Lei Federal [6.938] que incumbe ao Conselho especificamente esse poder”, explica.
Além disso, ele defende que esta lei não pode ser interpretada de modo isolado com o ordenamento jurídico, em especial com a Constituição da República. Gaio lembra, inclusive, que “a própria LLE possui um artigo que diz que a ordem econômica está condicionada à preservação ambiental (artigo 170)”.
Segundo o procurador do MPPR, a Abrampa vai se posicionar formalmente sobre o tema a partir da elaboração de Nota Técnica e, caso haja a aplicação concreta do referido despacho interpretativo nos demais licenciamentos ambientais conduzidos pelo Ibama, os Ministérios Públicos adotarão providências judiciais.
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