Montanhas de roupas usadas, carros e pneus de todo o mundo poluem o vasto deserto do Atacama, no norte do Chile, um ecossistema de equilíbrio frágil que se tornou o lixão do planeta. Entre paisagens cheias de beleza, aglomerados de detritos surgem em vários pontos do deserto, um território com mais de 100.000 quilômetros quadrados.
— São os sem escrúpulos do mundo que vêm jogar o lixo aqui (…) Não somos mais nem o quintal do bairro, somos o quintal do mundo, o que é pior —, lamenta Patricio Ferreira, prefeito de Alto Hospicio, onde toneladas de roupas usadas são despejadas entre as colinas que cercam a comunidade.
Na vizinha Iquique, também se acumulam milhares de carcaças de carros e pneus. São tantos que passaram a ser usados para construir muros de casas. Roupas e veículos entram no Chile pela Zona Franca de Iquique (Zofri), um dos mais importantes centros de comércio livre de impostos da América do Sul.
No ano passado, segundo o Serviço Nacional de Alfândegas, entraram no Chile 46.287 toneladas de roupas usadas, no valor de 49,6 milhões de dólares CIF (valor do produto, mais transporte e seguro). Milhares de carros usados também chegam ao Chile pela Zofri, a maioria com volante do lado esquerdo, que aqui é adaptado.
Boa parte dos carros é reexportada para Peru, Bolívia e Paraguai, mas muitos acabam abandonados nas ruas e vales do Atacama. No depósito municipal de Los Verdes, no norte de Iquique, foram retirados das ruas 8.400 veículos.
Falta de consciência global
A fragilidade do deserto e dos que vivem em seu entorno levaram a advogada Paulín Silva, de 34 anos, a entrar com uma ação contra o Estado do Chile pelos danos ambientais.
— Parece-me que temos que encontrar os responsáveis —, explicou à AFP em um morro de roupas usadas jogadas fora no setor La Pampa de Alto Hospicio.
Há camisas, roupas de bebê, calças e sapatos. Também pilhas de pneus, em uma imagem pós-apocalíptica que se repete em várias áreas desta região que é hoje uma das mais pobres do Chile. Um quarto dos seus 160.000 habitantes não tem água potável.
— Há muitos migrantes, muita pobreza, muitos viciados em drogas e não há ninguém que coordene as ações (ambientais) —, diz Silva.
Em seu processo, anexou imagens de satélite mostrando o crescimento exponencial dos depósitos de roupas.
— Isso não é produto da população de Alto Hospicio ou do norte do Chile. É um problema de falta de consciência global, de falta de responsabilidade ética e de proteção ambiental —, denuncia o prefeito Ferreira.
Mais da metade das roupas usadas que entram no Chile é descartada e vai parar no deserto. Para escondê-la, queima-se e enterra, gerando um problema ambiental adicional de fumaça tóxica.
— A questão é como acabar com a causa desse problema. O que o mundo faz com isso? O que o Chile faz com isso? —, questiona o prefeito de Alto Hospicio.
Para a advogada, há uma responsabilidade do Estado chileno ao permitir a existência dessas montanhas de lixo:
— Há um dever de vigilância —, afirma.
O juiz Mauricio Oviedo, titular do Primeiro Juizado Ambiental do Chile, onde tramita o processo, defende uma solução integral para o descarte de roupas.
— Parece-me que o Estado do Chile como um todo, com outras repartições (…), deveria olhar para este problema de forma sistêmica —, disse à AFP.
“Deserto não tão deserto”
Há pelo menos oito milhões de anos, o Atacama é o deserto mais seco do mundo, onde a chuva é um fenômeno raro, com precipitação anual inferior a 20 milímetros em sua zona mais seca.
— É um tipo de deserto em que o nível de chuva é extremamente baixo. Existem muito poucos desertos hiperáridos no planeta —, explica Pablo Guerrero, acadêmico de botânica da Universidade de Concepción e pesquisador do Instituto de Ecologia e Biodiversidade.
Em algumas zonas próximas da costa, a influência da neblina permitiu o desenvolvimento de um ecossistema “muito frágil”, onde devido à poluição, às mudanças climáticas e aos assentamentos humanos, já se extinguiram vários tipos de cactos.
— Existem espécies de cactos consideradas extintas. Infelizmente, é algo que se vê de forma muito massiva e com deterioração sistemática nos últimos anos —, acrescenta Guerrero.
Mas também existem outras fontes de risco para o deserto: a mineração de cobre e lítio, muito intensiva no uso de água escassa e na emissão de resíduos.
— Veem o deserto apenas como uma área de mineração, onde o mineral é explorado e onde podem extrair recursos ou encher os bolsos. Não há consciência de que é um deserto que não é tão deserto —, reclama Carmen Serrano, da organização Raíces Endémicas, da cidade de Antofagasta, considerada a capital mundial da mineração.
POSTS RELACIONADOS: